
Hoje, estendido num divã, ao fim da tarde olhava as nuvens correrem sobre o Rio que corre lá ao fundo. E pensava:
-Tenho-me sentido jovem até há poucos meses. Agora estou acabado. Parece-me que é tarde para tudo. Quando leio, não termino o parágrafo e começo o parágrafo seguinte. Cada livro em que pego já não me interessa antes de o ler ou sinto que deveria tê-lo lido antes. Diante de cada problema social, político, económico, sinto que já é tarde, não para me aprofundar mas para aproximar-me. Sinto que a minha vida falhou inteiramente. Passei de relance por tudo: ciência, fé, amor, sem nunca mergulhar. Também em matéria de fé, fiquei na periferia. Recuei diante das primeiras contradições, dos primeiros absurdos, do que me parecia preconceito e paganismo ...
Um jovem padre disse-me um dia que só há um modo de crer em Deus.
- Qual? Perguntei..
- Crer.
O meu modo de crer talvez seja errado, mas tenho um modo meu de crer. No museu de Luxemburgo há um quadro de Burnand: representa os Apóstolos Pedro e João, que na manhã de Páscoa vão ao túmulo do Senhor. João é um rapaz que se parece comigo quando jovem: cabelos atirados para trás, olhar atento, quase febril; as mãos juntas, não em posição de prece, mas como para comprimir a própria ânsia; Pedro tem o rosto queimado pela beira-mar; é um tipo maduro de homem do povo: a fronte esculpida de rugas, olhos de míope, que procuram; os dois caminham contra o vento e, se bem que não se veja senão a parte alta do corpo, há todo o movimento da impaciência, e da inquietude ...
Pois bem, esse quadro fala-me bem mais do que qualquer sermão, mais que qualquer prova da autenticidade dos actos dos Apóstolos. Quando tenho incertezas ,e posso, vou ver esse quadro. Creio assim, mas sinto que estou em atraso. Nestes últimos tempos sabia passar as minhas ideias, mas secretamente, no fundo, iludia-me nas minhas verdades. Tive, pois, de reconhecer que, na realidade, falei mentiras.
A minha vida não teve um acto de amor inicial, e eu procurei o amor toda a vida. Se amanhã, porque afinal preciso de viver, recomeçar o meu “comércio” de palavras de amor...não será de estranhar.
Toda a minha vida foi assinalada por um erro inicial: a falta de um acto de amor; o meu sonho era ter um filho meu, inteiramente meu, para o educar não de acordo com a minha conduta, mas de acordo com a que deve ser a conduta de um verdadeiro homem: um menino ao qual ensinaria as primeiras orações, as primeiras palavras, a composição das primeiras frases; de quem tiraria o canivete da mão ...
Para mim não existe sentido inverso.
Será que ainda sei as orações que teria ensinado ao meu filho?
É possível, e natural, que amanhã esteja melhor.
Boa noite a todos…