terça-feira, 19 de outubro de 2010

a Fé...e o Lobo


Hoje, estendido num divã, ao fim da tarde olhava as nuvens cor­rerem sobre o Rio que corre lá ao fundo. E pensava:

-Tenho-me sentido jovem até há poucos meses. Agora estou acabado. Parece-me que é tarde para tudo. Quando leio, não termino o parágrafo e começo o parágrafo seguinte. Cada livro em que pego já não me interessa antes de o ler ou sinto que deve­ria tê-lo lido antes. Diante de cada problema so­cial, político, económico, sinto que já é tarde, não para me aprofundar mas para aproximar-me. Sinto que a minha vida falhou inteiramente. Passei de relance por tudo: ciência, fé, amor, sem nunca mergulhar. Também em matéria de fé, fiquei na periferia. Recuei diante das primeiras contradi­ções, dos primeiros absurdos, do que me parecia preconceito e paganismo ...

Um jovem padre disse-me um dia que só há um modo de crer em Deus.

- Qual? Perguntei..

- Crer.

O meu modo de crer talvez seja errado, mas tenho um modo meu de crer. No museu de Luxem­burgo há um quadro de Burnand: representa os Apóstolos Pedro e João, que na manhã de Páscoa vão ao túmulo do Senhor. João é um rapaz que se parece comigo quando jovem: cabelos atirados para trás, olhar atento, quase febril; as mãos juntas, não em posi­ção de prece, mas como para comprimir a própria ânsia; Pedro tem o rosto queimado pela beira-mar; é um tipo maduro de homem do povo: a fronte esculpida de rugas, olhos de míope, que procuram; os dois caminham contra o vento e, se bem que não se veja senão a parte alta do corpo, há todo o movimento da impaciência, e da inquietude ...

Pois bem, esse quadro fala-me bem mais do que qualquer sermão, mais que qualquer prova da autenticidade dos actos dos Apóstolos. Quando te­nho incertezas ,e posso, vou ver esse quadro. Creio assim, mas sinto que estou em atraso. Nestes últimos tem­pos sabia passar as minhas ideias, mas secretamente, no fundo, iludia-me nas minhas verdades. Tive, pois, de reconhecer que, na realidade, falei mentiras.

A minha vida não teve um acto de amor ini­cial, e eu procurei o amor toda a vida. Se amanhã, porque afinal preciso de viver, recomeçar o meu “comércio” de palavras de amor...não será de estranhar.

Toda a minha vida foi assina­lada por um erro inicial: a falta de um acto de amor; o meu sonho era ter um filho meu, inteira­mente meu, para o educar não de acordo com a minha conduta, mas de acordo com a que deve ser a conduta de um verdadeiro homem: um me­nino ao qual ensinaria as primeiras orações, as primeiras palavras, a composição das primeiras fra­ses; de quem tiraria o canivete da mão ...

Para mim não existe sentido inverso.

Será que ainda sei as orações que teria ensinado ao meu filho?

É possível, e natural, que amanhã esteja melhor.

Boa noite a todos…